Liderança feminina: voltando ao normal
A liderança feminina tem sido um tema de grande expansão, nos últimos tempos a mulher tem ganhado mais espaços de fala. Mas será que a mulher nunca ocupou esse espaço na sociedade? Conversamos com Marta Celestino que nos contou um pouco de sua experiência enquanto mulher, pesquisadora, gestora em uma entrevista enriquecedora.
Marta Celestino é diretora de Marketing e Novos Negócios na Ebony English, gestora em educação, documentarista e viajante. Idealizadora do projeto Diaspora Connections, que visa reconectar a comunidade negra global num movimento de troca de experiências, celebração de conquistas e resgate cultural. Trabalha atualmente direcionando esforços para retirar a comunidade negra brasileira do isolamento cultural e social produzido pela condição do Brasil como país falante unicamente da língua portuguesa.
Marta Celestino no TEDxSãoPaulo. Foto: Anderson Jesus
"Em 2016 estive com no Hospital das Clinicas numa atividade no mínimo interessante, que era levar em tom de roda de conversa, a ideia da morte sob o ponto de vista do Candomblé e como seria o tratamento adequado a um enfermo, que fosse praticante da religião, quando das dependências do hospital. Era um trabalho desenvolvido pelos estudantes (equipe de Cuidados Paliativos) que explorava uma maior humanização do processo, entendendo como cada religião enxerga o momento da transição, com o objetivo de munir as equipes de informações a esse respeito quebrando preconceito, falta de entendimento e a velha rixa entre a medicina e a espiritualidade, num rumo onde permitir que o religioso seja acolhido por sua crença pode ser muito positivo não somente nos processos de cura mas também quando dos ritos de passagem, neste caso o falecimento. Estive lá acompanhada de um jovem convidado pela equipe, também iniciado na religião dos orixás. Muito mais jovem que eu em idade e tempo de feitura (iniciação para os orixás), este rapaz tinha muito conhecimento também, tornando o encontro muito rico, muito respeitoso e muito confortável.
Oficina de Comunicação HCFMUSP - Setembro/2016
O encontro me fez refletir mais um pouco sobra a corriqueira oralidade, herança africana tão forte, e sobre como é importante ouvir e procurar entender outras visões sobre as mesmas coisas e dialogar ao máximo, sendo esses passos os movimentos em direção a uma parte do que se entende por direitos humanos e como a sociedade está se organizando, às vezes até de forma inconsciente, para que este ajuste político social aconteça e os conflitos sejam cada vez mais substituídos pela comunicação e pelo entendimento sobre os diversos modos de viver dentro de uma mesma sociedade e principalmente como no fim de tudo as pessoas são receptáculos, invólucros, universos e me encanta a ideia de olharmos mais de perto cada indivíduo para entender os canais e o senso de conexão destes com o todo.
Não pude deixar de notar a quantidade massiva de mulheres nesta ocasião não somente perguntando mais envolvidas, organizando, pesquisando, convidando pessoas, compartilhando percepções e experiências. Pensando nisso acabei lembrando também do calendário lunar substituído pelo calendário solar, da demonização da menstruação e toda a cadeia de providências tomadas para relegar as mulheres a segundo ou último plano em muitas estâncias de organização social e obviamente lembrei de algumas referências de matriz africana, incluindo o candomblé, onde a mulher não é somente igual ao homem, mas muito respeitada politicamente, por sua influência, por seu poder de articulação e por seu poder maternal gerador para além do aspecto de dar a luz.
Se visitamos as lendas dos deuses africanos, vamos encontrar sociedades de mulheres altamente organizadas, misticamente poderosas, donas do mundo, dos segredos da criação do mundo. Me refiro a tudo isso ainda numa lembrança recente sobre uma conversa que tive com o um Arabá nigeriano (sumo sacerdote, chefe de todos os demais sacerdotes de sua região, tendo inclusive influencias em esferas políticas) em uma pequena palestra em Atlanta, nos Estados Unidos, onde num determinado momento, este senhor que aparentemente já viveu muito, detentor do conhecimento de medicina iorubana, da comunicação entre mundos paralelos, deuses, mortos e a natureza, me disse: tudo está voltando ao normal. Sendo assim, respondo as perguntas abaixo justamente pensando dentre tantas coisas, na normalidade da presença feminina, na essência crua das mulheres e como isso influencia tudo."
Entrevista com Marta Celestino
Blog: Nos últimos anos, o papel da mulher vem mudando na sociedade. Os padrões de liderança vem deixando de ser apenas padrões de dominância e um novo tipo de líder torna-se necessário. Fala-se muito no poder feminino como agente de mudança diferente do homem. Sem imitar e sem ocupar exatamente o papel masculino as mulheres abrem portas, criam novos nichos, e podem responder a questões sobre a liderança do futuro. Considerando a sua história de vida, como liderança que ocupa hoje, quais as características da mulher líder para este futuro (ou presente)?
Marta: Pensar em mulher é algo fundamentalmente complexo. Dentre tantas importâncias neste tema, estamos lidando diretamente com o poder da criação, falando de pessoas que têm dentro de si uma força transformadora e de geração, movimentando consequentemente tudo a seu redor. Enxergo aqui a mobilização como algo muito natural da mulher e por isso cada vez mais as lideranças estão sendo encubadas nos agrupamentos femininos. A mulher líder do futuro, que já está aqui no presente muito atuante, fazendo o contraponto necessário frente ao regime do patriarcado, tem como característica principal, no meu entendimento, um poder de leitura social e de diálogo altamente desenvolvidos, se movimentando de forma muito aberta, tendo a habilidade de ouvir verdadeiramente, sentir e comunicar o que sente, o que aporta ainda uma flexibilidade muito dinâmica, visto que não se enquadra em modelos pré concebidos em nenhum âmbito, sendo antes de outras coisas livre enquanto pessoa, enquanto existência. A mulher líder é dinamismo puro.
Blog: Hoje nossos cursos de capacitação são frequentados por 70% de mulheres, sendo as principais responsáveis pela atualização profissional e desenvolvimento de habilidades nesta área de comunicação. Como você vê isto?
Marta: Este é um cenário muito parecido com o da Ebony, instituição da qual eu sou gestora, onde somos aproximadamente 90% tanto em número de alunas como na gestão. Eu entendo isso como um efeito direto dessa natureza dinâmica que citei anteriormente, onde observamos o mundo, as pessoas, as coisas, nos questionamos e buscamos um melhor entendimento de onde estamos, de quem somos, do que estamos fazendo, dos nossos propósitos e principalmente buscamos sucesso, porque a maioria de nós mulheres não vê errar e recomeçar como opção recorrente. Aqui posso trazer para um contexto mais prático onde a maioria esmagadora de mulheres é unicamente e até solitariamente responsável pelo seu próprio sustento de suas famílias, fazendo toda a gestão de recursos financeiros, planejamento da sua vida, dos filhos (e companheiros para quem tem) o que acarreta uma sensação de não poder perder tempo ou se certificar do sucesso. A frase que melhor caberia aqui de forma bem simples e bem crua é: mulheres fazem tudo mesmo em todos os lugares, então nada mais natural de que estarem massivamente na vanguarda do desenvolvimento e atualização profissional e social.
Blog: Pode nos contar um pouco da sua história e sua participação no TEDx?
Marta: Bem a história do TEDx não é só minha muito embora a pergunta seja sobre a minha. O TEDx São Paulo, tem como curadora uma mulher incrível, Elena Crescia que tem uma equipe extremamente empática e muito receptiva, com a qual tive o prazer de trabalhar por aqueles dias. Nunca vou esquecer a primeira frase que ouvimos dela num dos encontros preparatórios: esqueçam o ego!
Eu que acredito muito na individualidade dos sentimentos, das percepções e das existências como uma forma de riqueza social captei a mensagem de uma forma muito elucidativa e isso me ajudou. Estávamos ali falando sobre ideias que merecem ser espalhadas e ora bolas, isso não poderia ser sobre mim, sobre meu ego. Achei fantástica a simplicidade como chave para a expressão das coisas. O processo de construção da fala para o TEDx foi algo que me fez remexer nas minhas experiências, reencontrando coisas que eu fiz como mulher negra até então desde a pré-adolescência e foi quando me vi inteiramente envolvida, porque sempre militei de alguma forma mas nunca me via conectada com uma instituição por exemplo, com um modelo de militância. Parei para me observar naquele contexto e foi bom, muito bom.
Antes de chegar ao TEDx São Paulo fiz uma transição de carreira, saindo de 25 anos em mundo corporativo de empresas multinacionais, extremamente cansada da política do “meu emprego minha vida” e a fábrica de robôs de comportamento como chave para o sucesso – e aqui eu questiono veementemente o que se chama de sucesso - para servir a comunidade através de um black business. Sim, é isso: servir a comunidade negra, através de um empreendimento com causa! Digo isso porque é um trabalho que nos envolve inteiramente e nos faz lidar com as pessoas, seus universos particulares e as suas necessidades bem como com os objetivos coletivos de uma comunidade globalmente espalhada por uma diáspora cruel e destrutiva e isso quer dizer que estamos, enquanto comunidade negra, num constante processo de construção e reconstrução, de busca por autoconhecimento e base para nossas existências enquanto pessoas. Daí que eu com esse trabalho tive a ideia e a oportunidade de conversar com pessoas da comunidade negra em outros lugares fora do Brasil e passei a imaginar e a me movimentar pelo que chamo de conexões da diáspora e fui vendo como a comunidade negra tem uma presença muito marcante em todos os lugares e como devido ao processo de desligue de nossa ancestralidade perdemos força de organização e consequentemente de criação de prosperidade financeira e psicológica. Me dei conta que a antiga pirâmide das necessidades sociais ainda faz peso e nos remete às lacunas que o sequestro e escravização de povos africanos geraram.
A participação no TEDxSaoPaulo - Mulheres que inspiram, foi uma experiência bem do jeito que gosto: “individualmente coletiva”. Foram muitas emoções, foi um processo que para mim envolveu uma posterioridade extremamente criativa. Foram muitos encontros e muitos sentimentos. No dia do TEDx, que aconteceu no Hotel Unique, todas nós tínhamos a sensação de que nossos ancestrais ali estavam e mesmo aquelas de fé cristã afirmaram isso. Eu de verdade não senti competitividade, não senti afronta, só senti um monte de mulher muito empática uma com a outra. Era muito cuidado, muita proteção. Estávamos no território do colonizador, um lugar onde muitas de nós só entraram para servir mas naquele momento, éramos as protagonistas do conhecimento, do compartilhar de ideias e experiências. Voltando a falar de mim: sou filha de empregada doméstica, fui criada numa casa onde as pessoas tinham nome de colonizador, isso mesmo, o sobrenome era Cabral, no entanto, não me sinto diminuída ou tensa em ambientes ricos e finos e tudo mais, eu só consigo enxergar pessoas, não há nada que me abale neste sentido. (vi tanto patrão com diarreia, vomito, gripe, resfriado, esclerose e etc que realmente nada vai além do conceito simples de pessoa).
Voltando, reitero que estou falando do que eu senti e não do que eu pensei, porque o pensar era muito rumo ao alvo, muito enfocado em passar a mensagem, a ideia que eu gostaria que fosse espalhada. Me concentrei em mostrar para as pessoas que a diáspora tinha nos sequestrado, nos violado e produzido uma massa de seres humanos quebrados porém incríveis que dominaram, com sua força milenarmente ancestral, todos os lugares que foram, despejando sua cultura, sua linguagem, sua comida, sua cor dentre tantos aspectos de forma que essa história não era de fracasso embora houvesse muita dor, mas uma história de sucesso de quem por ser altamente aberto ao pluralismo fez antes de qualquer movimento formal, um nítido movimento de globalização e permaneceu muito original e perene e bem fora de uma recessividade criada e imposta. Naquele momento eu queria que todos entendessem que a Mae Africa tem remédio para tudo inclusive para nossas dores contemporâneas e que essa história de vanguarda é que pode nos liderar no processo de construção de uma sociedade muito mais igualitária, muito mais humana frete aos desafios contemporâneos que pedem tanto dessa sabedoria.
No fim, o que posso mesmo dizer da participação no TEDx é que como toda boa experiencia, deixa uma montanha de aprendizados e descobertas, novas amizades, novos conhecimentos e até novas oportunidades. Eu acredito em pessoas e participar do TEDx reiterou minha fé na mais pura essência de alguém como força de mudança, transformação, prosperidade e equilíbrio.
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